A VIDA EM LETRAS NEGRAS
Marineide Conceição
Prefácio
AS LETRAS DE
UMA GRANDE
MULHER
Muitas foram as vezes que dona Marineide me pediu para transformar a sua história de vida em um livro. Talvez fosse esse o mínimo que eu pudesse fazer por quem me deu a chave para abrir as portas do mundo da leitura e da escrita. Desde os ensinamentos das primeiras letras na mesa humilde da casa onde ela pariu a mim e aos meus irmãos, até o translado para a escolinha, onde subíamos uma das ladeiras do Bela Vista com ela segurando firme em minha mão, a palavra escrita sempre me foi apresentada por minha mãe como uma arma para combater o peso das desigualdades que recaíam sobre a nossa família.
Para a sorte de todos, quis o destino que fosse ela mesma, com a ajuda da grande amiga Fernanda Protásio, a eternizar em um monumento-livro a sua trajetória. Uma trajetória que, ainda que singular, guarda uma ligação profunda com a história geral de mulheres negras em uma sociedade estruturada sobre hierarquizações raciais e sexistas. Quando uma narrativa assim nos é contada pelas mãos do próprio sujeito que vivenciou tais experiências, as palavras-lâminas cortam fundo a subjetividade dos leitores, lhes marcando para sempre o espírito. É impossível
sair de uma leitura como essa sem no mínimo sentir o peso das lágrimas que banharam o rosto da escritora ao relembrar dos eventos trágicos que compõem a sua história. Assim como é impossível passar sem ver brotar um fio de esperança diante das suas superações.
Marineide Ferreira da Conceição traz em sua autobiografia, memórias que nem ela mesma julgava tão potentes. Por isso ela se surpreendeu e chorou toda vez que releu os seus manuscritos em voz alta — algumas vezes presencialmente, outras vezes via chamada de vídeo —, para que os seus ouvintes, nos quais me incluo, pudessem dar as suas opiniões. Ela se perguntou diversas vezes “por que?”, mas no fundo ela já havia entendido que seus traumas estavam ali, cravados em seu espírito e que os contar era uma maneira de começar a expurga-los. O que ela talvez não tenha percebido é que a sua voz individual tem enorme reverberação coletiva, porque encontra nas histórias de vida de inúmeras outras mulheres negras e na própria história do nosso país, as paredes por onde ecoar.
A palavra escrita desta vez pousou na vida de dona Marineide para anunciar a todos que podemos estar diante do alvorecer de novos tempos. Tempos em que as vozes de mulheres negras, vindas de zonas rurais e ex-empregadas domésticas — vizinhas das mesmas necessidades de Carolina Maria de Jesus, em outros quartos de despejo —, após décadas de lutas, começam a ganhar espaço entre as políticas públicas de incentivo à cultura. Vista dessa forma, concordando com a escritora e psicóloga portuguesa, Grada Kilomba, “a escrita emerge como um ato político”, pois a escritora dessas memórias tornara-se narradora e escritora
da sua própria realidade, “a autora e a autoridade” da sua própria história, tornando-se “a oposição absoluta” do que a nossa estrutura social racista, historicamente construída, predeterminou (KILOMBA, 2019) .
Isso me faz lembrar que uma das maiores preocupações de dona Marineide ao reconstruir as suas memórias, foi a de que os leitores compreendessem que tudo que é narrado nas páginas do seu livro é “verdade”. Não adiantou que eu explicasse a ela que a nossa memória é “uma ilha de edição”, onde reconstruímos as nossas experiências a partir dos sentimentos que os eventos vividos suscitaram em nós no momento de sua realização, ou dos sentimentos que a sua lembrança nos provoca no presente; e/ou das conveniências que tais lembranças têm para o que somos agora; e que, portanto, o conceito de verdade deveria ser ponderado. Seu desejo era de que o leitor entendesse as suas palavras como o retrato de uma realidade. Talvez por essa realidade ser muito dura em muitos momentos, ela tivesse medo de que fosse confundida com algo fictício. No fim das contas ela estava certa. Tudo que aqui é narrado é verdade. Essas memórias compõem as orientações de quem ela é em suas práticas cotidianas. Eu mesmo sou prova disso! Ouvi durante a minha vida inteira: “aquilo que eu não tive, quero para os meus filhos”, e assim foi. Nunca dormi com fome e nunca precisei abandonar os estudos para trabalhar; sempre que possível saia de casa com algumas “moedinhas trincando nos bolsos”; tive os brinquedos bons e as boas experiências da infância que ela não pode ter. Tudo que ela fez por mim e por meu irmão, foram atos que se contrapõem aos projetos de opressão e
controle, quando não à dizimação, do povo preto brasileiro. Portanto, sim! Aqui é contada uma história verdadeira em múltiplos sentidos.
“Não mudando de pau para cacete” – como diz a escritora –, mas em se tratando da estrutura e do estilo da narrativa, é importante que se saiba que o espaço entre as vivências e a escrita de dona Marineide é relativamente longo – algumas lembranças são de mais de 40 anos atrás. Por isso muitos eventos são narrados assim, “na lata”, sem muitos detalhes. Com isso a sua obra ganha em originalidade, pois não tenta mimetizar as características de qualquer escola literária e traz ao público o que de fato foi mais marcante nas experiências da autora. Aquelas lembranças que ela nos contava em nosso dia a dia, para que agradecêssemos pelo que tínhamos e nos motivássemos a perspectivar um futuro melhor, estão expostas aqui para que ao passear pela trajetória de uma mulher negra, possamos pensar melhor a nossa própria existência em uma sociedade profundamente desigual.
Por fim, ainda é importante que saibamos da pessoa que é Marineide Ferreira da Conceição. Dona de um grande coração, muita inteligência e habilidades únicas nas artes culinárias, ela é sem dúvidas uma figura ímpar e desperta carinho e amizades por onde passa. Não se resumindo à mãe carinhosa, atenciosa e muitas vezes flexível ou à companheira imperecível do seu amado, seu Juarez, essa mulher guerreira e forte mostra-se agora, com toda coragem, através da palavra escrita, na esperança de tocar os sentimentos dos leitores.
Espero que você, leitor, possa se emocionar com as memórias narradas aqui, pois elas representam uma trajetória exemplar e necessária de ser ouvida, para que reflitamos e, se possível, compreendamos melhor a nós mesmos e a sociedade na qual estamos inseridos.
Alex Conceição, filho de dona Marineide.
01 de maio de 2024
Ilhéus-Ba
Especificações técnicas
Biografia e memórias
100 páginas
14x21cm
Capa laminação fosca
Miolo papel polen 80g
ISBN 978-65-01-02709-8
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